Mapa Luga, uma lacuna
Curadoria Luísa Soares de Oliveira
22 Fevereiro a 20 Abril 2019
Centro Cultural de Cascais
Cascais
MAPA LUGA
No diário desenhado e escrito que foi criando enquanto trabalhava para esta exposição, Rui Horta Pereira, entre outros aforismos, escreve a certo ponto que “nada é mais difícil que um lugar de repouso”. A frase termina (ou começa) o desenho em que uma linha labiríntica percorre o espaço de uma das folhas de papel do caderno. De certo modo, ela põe em cena três elementos fundamentais dos trabalhos que aqui apresenta: o lugar, a linha, e o espaço. Isto, não contando com a referência muito vaga a uma dificuldade; podemos defini-la como um acidente que interrompe o processo de desenhar, e que, como todos os acidentes, vai provocar um desvio de um percurso que se imaginou a priori de determinada forma. Consideremos então esses três elementos primordiais do desenho. No seu conjunto, constituem uma grelha sobre a qual o trabalho do artista se vai desenvolver. O espaço é primeiramente o espaço da folha de papel, esse lugar indeterminado e neutro sobre o qual o desenho se materializa. Branca, mais ou menos texturada consoante o tipo de trabalho que o artista aí pretende desenvolver, é o suporte de um processo que, neste caso, releva tanto do resultado como do trabalho e do tempo que se adoptam para lá chegar. Dito de outra forma, o desenho, na obra de Rui Horta Pereira, possui uma componente experimental e processual que é evidente, e que é sempre deixada aparente. Nunca o artista nos deixará ver a obra terminada sem nos oferecer, do mesmo modo, a intuição do caminho que tomou para aí chegar. Na solidão do seu atelier, na multiplicidade de estímulos que enformam o seu dia de trabalho, apresenta[1]nos sempre uma obra que extravasa os limites tradicionais do desenho – os do rectângulo da folha de papel branca – para uma ocupação do espaço que é própria da arquitectura ou da instalação. Assim, os desenhos de Rui Horta Pereira nunca são apenas desenhos, e isto apenas levando em consideração os seus aspectos formais. Dobram-se, e ao dobrar-se provocam ilusões de tridimensionalidade no espaço que nos envolve, citando longínquos sólidos geométricos ou maquetes de fantasiosas arquitecturas imaginadas. Dispõem-se no chão, obrigando-nos a observá-los no plano horizontal que, na sala de exposição, é o lugar da forma escultórica. Penduram-se como mobiles ou montam-se, mais prosaicamente, na parede, segundo um propósito que o desenho sempre partilhou com a pintura. Em todos os casos, em todas as séries, ultrapassam a própria definição do desenho para se assumirem como linha, colorida ou não, que dentro e fora da folha branca do desenho percorre um lugar sem qualidades. Linha essa que, recordemo-lo, era o segundo elemento da grelha que permitia o acontecer desta disciplina. O nome que Rui Horta Pereira deu a esta exposição, Mapa Luga, resulta de um jogo com as palavras “mapa” e “lugar”. No caso do título, o artista procedeu por eliminação de uma letra na segunda palavra, o que nos impede de identificar a sua origem de imediato. Nem sempre isto sucede quando se retira uma letra a uma palavra, como a nossa experiência quotidiana nos ensina. Aqui, “luga” pode ser visto como o resultado também de um acidente, talvez muito parecido, em natureza, com o cansaço que impedia a construção (ou a descoberta, ou a chegada) ao lugar de repouso mencionado no início do nosso texto. De qualquer forma, este acidente resulta de uma falta, tal como os não-lugares definidos por Marc Augé que Rui Horta Pereira gosta de citar a propósito da sua obra, e que nos introduzem na terceira coordenada que define o desenho deste artista. Recordemos este conceito, que está intimamente relacionado com a época em que vivemos, uma época que ultrapassa a modernidade que caracterizou a experiência (estética, também) do século XIX e, parcialmente, do XX. O não-lugar é um lugar incaracterístico, sem qualidades, de passagem, definido por três parâmetros: não é nem identitário, nem relacional, nem histórico, como por exemplo um aeroporto, que é um lugar de espera e passagem mas nunca um lugar que identifica o seu utilizador, e ao contrário de uma cidade, por exemplo, que possui uma história, define uma identidade e possibilita a criação de relações entre os habitantes. Ao lugar – e ao não-lugar também – correspondem também espaços definidos, sendo estes criados, sempre segundo Augé, por relações geométricas: as linhas (percursos), as intersecções de linhas (encruzilhadas, praças) e pontos (centros, catedrais, monumentos). A linha, o lugar e o espaço, para além das suas diferenças epocais, determinam assim as definições de territórios que o artista pode, se assim o entender, replicar autoralmente no seu trabalho. Podemos assim imaginar que o lugar do desenho de Rui Horta Pereira se materializa na tensão entre a história da modernidade e a prática contemporânea de um espaço virtualmente sem fim que pode ser ocupado por linhas, intersecções e pontos; pela cor que é apanágio indizível da pintura e pelo traço que é próprio do ofício do cartógrafo; pela construção tridimensional da escultura e pela definição de espaços por projecção arquitectónica. Neste trabalho, a componente experimental é a mesma da exploração do espaço, da sua definição como território por mapear, e sobretudo consciência de que a linha original que o artista começou em tempos a riscar, desenhar ou mesmo pintar no seu suporte é uma linha sem fim. Talvez lhe interesse mais o acto de desenhar do que a obra terminada. O desenho, afinal, será ele próprio um espaço que é urgente percorrer.
Luísa Soares de Oliveira