Laivo
26 Março a 30 Abril 2022
PIPA Programa da Imagem e da Palavra da Azinhaga
Azinhaga
Photos By Bruno Lopes e RHP
“Para tudo nos falta tempo, tanta falta nos faz o tempo.”
Rui Horta Pereira
Ponte de Sor, maio 2017
Rui Horta Pereira (Évora, 1975) apresenta na exposição Laivo, no PIPA – Programa da Imagem e da Palavra da Azinhaga, uma série de trabalhos intitulada Livro das Dobras, que refletem sobre como o saber-fazer artístico tende a expandir os limites das disciplinas como o desenho, a escultura, a pintura, a fotografia ou a performance. Talvez numa aproximação ao escrivão Bartleby, personagem do conto de Herman Melville publicado em 1853, será preferível não assentar a sua obra em nenhuma disciplina e deixá-la pairar ao sabor do tempo que persiste em passar.
Apesar do artista ter formação em escultura, o seu trabalho tem sido comumente associado ao desenho, na medida que a folha de papel tem servido como suporte de ações de mapeamento ou escrita de uma possível linguagem. Em “Copiar é uma ideia barata” (Fundação Carmona e Costa, 2016) Nuno Faria refere precisamente que: “o desenho é um projecto global, um eterno retorno, uma fonte de resolver problemas, e de os criar, uma forma de distracção, um incessante modo de transporte, no espaço e no tempo.” Neste sentido, associando esta ideia à hipótese de Rui Pina Coelho em “A performance do tempo: ontologia da sombra” (Galeria das Salgadeiras, 2021), pode-se aferir que a coincidência do tempo parece revelar-se essencial à concretização das suas obras, porque revela resistência à fixação em categorias e, do mesmo modo, o processo de trabalho que lhes dá origem. Contudo, nos seus trabalhos mais recentes, nomeadamente Livro Sol (2020), Sol Fino (2020) e Fresta (2021), o artista tem colocado em problemáticas pictóricas, como a utilização da cor, a preocupação com a mancha e das suas subtilezas. Neste sentido, João Pinharanda refere em “Pintura: Campo de observação” (Galeria Cristina Guerra, 2021) que Rui Horta Pereira executa “delicadíssimas pinturas; na realidade são registos do trabalho da luz do Sol (…) sobre simples cartolinas coloridas – funcionam assim como registos meteorológicos aleatórios e de impossível leitura”. Por outro lado, a presença da fotografia nas obras de Rui Horta Pereira fica evidente no processo de luz que queima as folhas de papel expostas. Estas são as cinco premissas iniciais – desenho, escultura, pintura, fotografia e performance – que, através da ação mínima e distante sobre as obras na esperança de um possível resultado, indiciam uma inquietude no processo. Talvez retornando à negação da escultura, em que a ação da mão e a presença arquitetónica são sempre evidentes, Rui Horta Pereira “prefere não fazer” e distancia-se do objeto artístico deixando-o à sorte do seu tempo.
A complexidade da palavra “tempo” encontra-se espelhada nas suas inúmeras definições. Segundo o Dicionário Priberam (consultado em 19-02-2022), entende-se por “tempo”: uma “série ininterrupta e eterna de instantes”, uma “medida arbitrária da duração das coisas”; uma “época determinada”; um “prazo, demora”; uma “estação, quadra própria”; uma “época”; um “estado da atmosfera”; e, entre outras possibilidades, destaca-se um “vagar, ocasião, oportunidade”. É neste tempo vagaroso, que parece ficar à espreita para ser oportunista, que se pode desvelar as obras de Rui Horta Pereira. Através do processo de heliografia (do grego “gravar com o sol”) o artista transforma as incisões, os rasgões, as dobras, a colocação de objetos que foram realizadas previamente em imagens reveladas em cartolinas pretas. A marca, entendida como laivo, é uma espécie de vestígio deixado para trás e realizado por uma substância ou pelos dedos. A marca que fica nas obras de Rui Horta Pereira são as sombras e a omissão dessas ações, como que fantasmas se tratassem, porque o que fica visível em cinzento ou branco é o papel queimado pelo sol, e o invisível torna-se visível. Este processo contraditório parece funcionar por ausência, por não estar presente, por “preferir não fazer”, por preferir que o tempo se suspenda, deixando as obras sem chão ou sem céu onde se ancorarem.
Ao escapar às categorias artísticas e ao distanciar-se do objeto artístico final, Rui Horta Pereira parece preferir ausentar-se num lugar próprio, talvez por detrás da cortina, e assistir à ruína e à fragilidade dos materiais, descomprometendo-se com a eternidade dos mesmos, mas revelando uma profunda dedicação ao atelier e uma fidelização à ação soturna e obscura, numa ideia romântica sobre o tempo e o modo como ele decorre.
Hugo Dinis
Guarda, fevereiro 2022