Close
Type at least 1 character to search
Back to top

A maioria das pedras …

A maioria das pedras não tem fôlego e etc.

17 Setembro a 7 Novembro, 2020

Galeria das Salgadeiras

Lisboa

Photos by Bruno Lopes

 

Uma pedra de calcário que à ventura se colocou no caminho de Rui Horta Pereira enquanto deambulava pelo Morgado do Quintão, em Lagoa numa residência artística. Com o olhar perspicaz e arrebatador, foi esta e não outra que suscitou a sua atenção e o levou a um outro lugar do seu coração, a oficina “Pó de vir a ser”, em Évora. Aí com o rigor da máquina de corte, a pedra, que mais se parece com um fóssil que nos seus sedimentos enclausura a memória daquelas terras algarvias, a pedra, essa, é sucessivamente laminada como que extraindo consecutivas porções de tempo. E é dessas camadas irregulares, porosas, toscas na sua membrana e suaves no interior, que surgirão outras marcas do tempo, transferidas para o papel. Sim, diz o próprio artista, numa espécie de recado: “a maioria das pedras não tem fôlego e etc”, acordam cedo e adormecem para a eternidade. O ciclo da existência da pedra continua, não se repete, não se fecha. Na verdade revela-se sendo uma espiral. “Não existem pedras / Existe uma pedra só / Que perante a luz / Refaz constantemente / O seu segredo!”, continuando a citar Rui Horta Pereira.

Nesta exposição apresenta-se um conjunto de desenhos apropriando-se do sol como recurso, tendo a transformação desta pedra de calcário como ponto de partida. O tempo, o acaso, a obsessão por um processo criativo casualista e controlado, neste apenas aparente paradoxo. Colocadas no chão, de onde vieram, as lâminas de calcário são agora sedimentadas em cima do papel, deixando os seus próprios vestígios bem como os resquícios do longo tempo de exposição à luz solar e à humidade. O tempo é incerto mas não é aleatório, depende do tempo-época, tempo-metereologia, tempo-tempo, e a seu tempo se parará o tempo e a sua impressão no papel. Há, por outro lado, uma ideia de respigador no uso compulsivo e autêntico dos recursos que da Natureza dispomos, numa exigência programática e política que tem pautado o percurso de Rui Horta Pereira, sobretudo nas séries como “A Penumbra golpeada de luz” ou “Poço”, ou nas esculturas “Cúmulo-Nimbo” e “Chove Mar Chove”, apenas para mencionar obras recentes onde as questões da sustentabilidade do planeta estão presentes.

Em “A maioria das pedras não tem fôlego e etc” coloca-nos também perante este dilema sobre a própria tipologia das obras apresentadas. Serão desenhos, afinal tratam-se de linhas numa superfìcie? Ou desenhos-objectos, já que a sua natureza tridimensional não é meramente acessória? Onde estão os limites do traço e do pictórico? Reflexões às quais Rui Horta Pereira tem dedicado a sua investigação criativa, extravasando amiúde os cânones do Desenho enquanto disciplina artística, mantendo-se, porém, fiel ao pensamento teórico que lhe é subjacente.

Perene a pedra persiste, com fôlego, algumas, sem ele a maioria delas. As que o têm, “resistem à  eternidade, adormecem com ela” e resgatam o chão como o seu lugar. Num plinto invertido, a pedra volta a reconstituir-se, camada sobre camada, tempo após tempo, ocupando o vazio, à espera de outra (a)ventura para onde a poesia a leve.

 

Ana Matos

Lisboa, Setembro de 2020