Turvo
18 Setembro a 8 Novembro 2014
Galeria 3+1, Lisboa
Photos by Bruno Lopes
Nothing can be predicted by means of it[1]: Fazer sem fazer
Ao brilhante ensaio de Goethe, publicado em Maio de 1810, sob o título Zur Farbenlehre, baseado nas observações deste acerca dos aspectos fisiológicos das cores e dos fenómenos implicados na sua percepção (e concebido como resposta às teorias de Newton), Ludwig Wittgenstein, contrapõe, anos mais tarde, o seu Bemerkungen über die Farben. Conjunto de reflexões filosóficas baseadas na premissa de que a obra de Goethe não constituía, de facto, uma teoria, mas antes e apenas uma demonstração esquemática das suas observações, tendo sido posta cientificamente em causa pelos diversos investigadores e divulgadores científicos que, ao longo do tempo, a ela se dedicaram.
A influência desta Teoria das Cores de Goethe no território da Arte é, apesar de tudo, absolutamente evidente e, desde o seu contemporâneo Philipp Otto Runge, a Turner, aos Pré-Rafaelitas, ou a Kandinsky, foram de facto os artistas que continuaram e continuam a fazer uso do seu pensamento, tanto ao nível da sua aplicação material, como ao nível da sua génese psicológica, uma vez que, para muitos artistas, as cores são entendidas também na sua dimensão simbólica e transportam assumidamente estados de afectação psicológica.
O problema parece recorrente e intemporal, portanto: a forma como certos recursos pictóricos, ou a capacidade imagética de certas cores, se impõem, por forma a produzir determinadas condições materiais na pintura.
De acordo com o dicionário, o termo Turvo, caracteriza aquilo que apresenta opacidade, que se encontra coberto, ao qual falta claridade, ou – podemos nós acrescentar – ao qual falta luz.
Neste sentido, podemos começar por entender esta exposição como o momento em que um determinado conjunto de objectos – que parecem extravasar os limites tipológicos ou disciplinares, colocando-se nos territórios de fronteira entre o Desenho, a Pintura, a Escultura e a Instalação – são conscientemente trazidos à claridade.
No interessante conjunto de obras em tela da série Turvo, encontramos uma espécie de representação material de um processo pictórico ao qual foi dado tempo para que pudesse acontecer. Estas obras, produzidas a partir da aplicação de tinta (suspensão de pigmentos muito diluídos num solvente aquoso) – à qual vamos chamar forma – sobre uma superfície branca – à qual vamos chamar fundo – resultam justamente na formulação definida pelo processo natural de secagem desta tinta sobre o fundo devidamente confinada à forma que lhe serviu de molde. Processo sobre o qual o artista escolhe não intervir, deixando que o tempo e as condições atmosféricas e ambientais se encarreguem de fazer naturalmente o seu trabalho. Este resultado, é ainda devedor, não podemos esquecer-nos, da possibilidade de reacções químicas decorrentes do contacto entre os vários materiais (pigmentos, água, fundo, tela).
Deste contexto de aparente opacidade e profunda imprevisibilidade, surge um conjunto de obras de grande riqueza cromática, nas quais a imagem ou representação advém, em grande parte, da história do seu próprio material, do seu próprio fazer.
Ora, ao contrário de Newton (que considerava que na ausência de luz não poderia manifestar-se qualquer fenómeno de produção de cor), Goethe considerava que da sombra também advinha cor, ou melhor, que a sombra teria de ser um elemento a considerar na sua condição de conceito opositor à ideia de luz e, por isso, necessariamente também um interveniente fundamental nos fenómenos de percepção da cor.
É, também à luz desta ideia, que podemos analisar toda a exposição e também muito particularmente a série Desenhos Mortos. A partir de uma imensa quantidade de desenhos antigos – nos quais Rui Horta Pereira não encontrava já qualquer sentido ou utilidade – aos quais adicionou água, o artista produziu (manualmente) uma pasta de papel, à qual juntou uma determinada selecção de pigmentos. Estas várias pastas de papel (agora de cores diferentes) serviram-lhe para produzir um conjunto de quadrados que foram deliberadamente deixados a secar, deixando que sobre eles actuassem unicamente os elementos naturais.
Deste processo, baseado numa forte noção de economia de meios e numa profunda crença de carácter ecológico – comuns já a outras obras do artista – , resultariam mais tarde um conjunto de objectos tridimensionais que serviram de base a combinações cromáticas especificamente determinadas pelo artista. As diversas aplicações de cor de que, posteriormente, foram alvo resultam de mais um processo em que o acaso é assumido como factor determinante da resolução formal definitiva.
A magia desta transformação – se pensarmos no balde de pasta de papel turva que dá depois lugar a um maravilhoso universo formal e cromático – reside também na ideia de estes objectos, apesar de transformados, transportarem ainda consigo a memória, não só dos vários processos nos quais assentou a sua manufactura, como também de todos os desenhos (mortos) que fazem agora parte da sua matriz.
Numa observação cuidada notamos que também estes objectos revelam a história do seu fazer mas, mais do que isso, acercamo-nos da ideia de que são simultaneamente eles e todos os outros que lhes deram origem.
Seguindo o seu habitual processo de trabalho, amplamente apoiado numa matriz experimental, Rui Horta Pereira, concebeu então toda a exposição a partir de uma ideia de laboratório – e também aqui a analogia com a Teoria das Cores de Goethe é bem acolhida, uma vez que este reafirma a importância da experimentação como processo mediador entre o sujeito e o objecto, assentando toda a sua prática na experiência e na observação. Neste laboratório, que é o estúdio do artista, dão-se os mais díspares fenómenos e são produzidos, como já vimos, os mais inesperados resultados. No decorrer da observação destes fenómenos vão sendo tomadas decisões e é na assunção dessa consciência conceptual que se reafirma a sua condição de autor.
A série Nível e a série Vampiros são disto um bom exemplo, na medida que os objectos que as compõem parecem resultar de procedimentos mais ou menos aleatórios na sua execução. A forma como a tinta é aplicada sobre o pano, o processo de absorção da tinta pelo pano, as inevitáveis sobreposições de linhas de cores decorrentes das condições de secagem e a forma (conscientemente) descontrolada como estas cores se vão misturando à medida que o pano as vais absorvendo nas várias camadas em que foi previamente dobrado, fazem crer não existir na sua génese qualquer programa ou projecto pré-definido. Assim é, na realidade. Mas a formulação final destes objectos, bem como a sua forma de apresentação – e reafirmamos aqui a nossa profunda convicção de que a obra só é obra na sua condição de apresentação – resulta de um aturado e complexo processo de observação e reflexão. Conceptualmente passam a ser obra apenas no momento em que é encontrada e devidamente circunscrita a sua resolução formal definitiva.
Da inevitável opacidade implícita no título da exposição – Turvo – o artista faz nascer, assim, um universo imagético carregado de luminosidade e vida, e é, em grande medida, nesse processo mágico, alquímico de transformação que reside o segredo da exposição. Também, neste sentido, se entendermos a obra de Rui Horta Pereira, como um longo e muito diverso processo de trabalho onde a observação e assumpção do acaso aliadas, tanto à procura e constante investigação de novas metodologias, quanto a uma profunda admiração pelos processos naturais, poderemos convictamente afirmar que: há muito fazer neste (aparente) não fazer.
Ana Anacleto
Setembro 2014
[1] Wittgenstein, Ludwig
Remarks on Colour, University of California Press, Berkeley, CA, 1978